Não podemos falar sobre alfabetização e ensino bilíngue sem antes falarmos sobre concepções de alfabetização e letramento. O ensino bilíngue na educação infantil carrega essas concepções ainda que não estejam tão claras para algumas famílias. O que falamos quando pensamos em alfabetização? Bilinguismo antes ou depois da alfabetização? É possível ocorrer alfabetização bilíngue simultânea, ou seja, em duas línguas ao mesmo tempo?
Essas e tantas outras perguntas são tão frequentemente levantadas na hora de falar sobre este assunto.
Alfabetização Infantil
Podemos dizer que há alfabetização na infância desde que a criança nasce. Alfabetização é um processo e não é um conhecimento construído só na escola. Desde que nasce, a criança está inserida em uma cultura e tem contato com a escrita mesmo que não seja de forma sistematizada.
Ela está o tempo todo interagindo com o mundo e tem contato com o objeto cultural que é a escrita desde sempre. Esse contato se dá primeiramente pelo seu próprio nome, depois por outros elementos como placas que vê na rua, pela lista de compras que observa a família fazer, pela embalagem dos produtos que a família consome, pelas marcas que estão inseridas no seu cotidiano com letras, formatos e cores diversos, pelos livros que tem a oportunidade de ter contato, etc.
Para falar sobre alfabetização na infância, é importante destacar a concepção de criança que temos para entendermos qual linha teórica dirigimos nosso olhar na discussão desse texto:
“Sujeito histórico e de direitos que, nas interações, relações e práticas cotidianas que vivencia, constrói sua identidade pessoal e coletiva, brinca, imagina, fantasia, deseja, aprende, observa, experimenta, narra, questiona e constrói sentidos sobre a natureza e a sociedade, produzindo cultura.” (BRASIL, 2010a, p.12)
Por conta disso, entendemos que é de direito da criança estar no centro do processo de sua alfabetização, refletindo sobre a escrita e trazendo para a sala de aula o seu conhecimento sobre o mundo letrado.
“Desde que nascem, as crianças são construtoras de conhecimento. No esforço de compreender o mundo que as rodeia, levantam problemas muito difíceis e abstratos e tratam, por si próprias, de descobrir respostas para eles. Estão construindo objetos complexos de conhecimento e o sistema de escrita é um deles”. (FERREIRO, 1985, p. 64)
Essa forma de pensar sobre alfabetização está no centro dos estudos da psicolinguista argentina Emília Ferreiro. Essa pesquisadora trouxe importantes considerações a respeito de como as crianças refletem sobre a leitura e a escrita em seu livro Psicogênese da Língua Escrita. Essa obra é considerada um marco porque leva em conta como a criança pensa nesse processo e é participante ativa nele. Até então, as discussões sobre o assunto eram voltadas para métodos e atividades externas. Antes dos estudos de Ferreiro, o enfoque era nas práticas mecânicas, na caligrafia, nos exercícios de coordenação e repetição.
Ao mesmo tempo em que devemos investigar com quantas e quais letras se escreve uma palavra, onde elas se posicionam, devemos também trabalhar com os processos de produção e compreensão de textos. Qual a intenção da escrita? Quem escreve e para quê? Qual a função social desse texto que estou escrevendo? Essas são perguntas que devem estar dentro do contexto de alfabetização. E isso inclui contextos de alfabetização em língua estrangeira.
O que é alfabetização e letramento?
Para Emília Ferreiro, alfabetização e letramento são termos que podem ser vistos juntos, podem coexistir. Para ela, pode-se substituir um pelo outro, por exemplo, mas não tratá-los como indissociáveis.
Já Magda Soares, pesquisadora da Universidade Federal de Minas Gerais, utiliza os termos “letramento” e “alfabetização” para se referir a dois momentos distintos no processo de alfabetização da escrita pela criança, como aponta Heloísa Amaral. Para Soares, o letramento é o uso social competente da leitura e escrita, isto é, ele implica em ler e compreender em diferentes situações comunicativas. A alfabetização, por outro lado, diz respeito à aquisição de aspectos técnicos (relacionar sons com letras, fonemas com grafemas, aprender a segurar o lápis, a escrever da esquerda para direita, etc.), a codificar e decodificar a escrita. Para ela, estes dois tipos de aprendizagem devem ocorrer ao mesmo tempo, tendo práticas autênticas de uso dos diversos tipos de materiais escritos (listas, convites, histórias, bilhetes, etc.) como referência.
Ambas concordam que é um problema considerar a escrita apenas como código. Ela é um objeto cultural e cumpre diversas funções sociais. Como aponta Délia Lerner (2002), a escola deve assumir sua função social de formar leitores e produtores de texto tendo as práticas sociais vinculadas com os usos da língua como elementos centrais ao programa escolar.
Processo de alfabetização em inglês
Ao processo de alfabetização em inglês e português ou em duas línguas dá-se o nome de biletramento. O termo biletramento está ligado a “toda e qualquer instância em que a comunicação ocorre em duas (ou mais) línguas em torno do material escrito.” (HORNBERGER, 2001, p. 26).
Importante ressaltar que a alfabetização acontece uma vez na vida. A aquisição de alguns dos aspectos técnicos que mencionamos anteriormente ocorre uma vez. Depois de adquiridos, o que acontece é a transferência dos conhecimentos que foram adquiridos nessa experiência de alfabetização na primeira língua para a segunda língua. Veja o que afirma Bialystok et al. (2005: 44):
“Há duas razões pelas quais a alfabetização pode ser diferente para crianças bilíngues e monolíngues. A primeira é que os bilíngues desenvolvem várias habilidades para alfabetização de maneira diferente dos monolíngues. A segunda é que os bilíngues podem ter a oportunidade de transferir as habilidades adquiridas para ler em um idioma e ler no outro. Em ambos os casos, a relação entre os sistemas de escrita nas duas línguas determina a semelhança nas habilidades cognitivas necessárias para a leitura e também pode determinar até que ponto o bilinguismo afeta a alfabetização.”
Desde que seja dada às crianças a oportunidade de usar ambas as línguas, nas modalidades oral e escrita, elas se tornarão bilíngues e biletradas. Portanto, desenvolverão mais recursos para dar conta das demandas cognitivas e sociais nos contextos em que estão inseridas, tais como na escola, em casa, na comunidade e possivelmente em suas carreiras futuras. (REYES apud FINGER, BRETANO, RUSCHEL 2019).
Uma dúvida recorrente está ligada ao biletramento simultâneo. Popularmente, algumas pessoas se referem à alfabetização bilíngue simultânea, querendo dizer que a alfabetização está acontecendo ao mesmo tempo em duas línguas ao invés de acontecer em uma, para só mais tarde ser possível em outra. A pergunta sobre isso gira em torno da espera ou não para iniciar a alfabetização em língua estrangeira. É muito perigoso, até porque nenhum estudo é conclusivo sobre aprender a ler e escrever em duas línguas ao mesmo tempo ser prejudicial. A resposta está muito mais ligada à concepção de língua que a escola possui e à linha teórica que estamos olhando para esta questão. É bem difícil quebrar paradigmas, não é mesmo? Mas vamos falar um pouquinho sobre eles para que fique mais fácil de entender por que a resposta depende disso.
Por um tempo acreditava-se que as línguas agiam separadamente dentro do nosso cérebro, que as línguas que nos constituem estivessem compartimentadas como se houvesse duas cabeças em uma só. A esse tipo de visão, chamamos de visão monolíngue. Por trás dela, existe a ideia de que as línguas se atrapalham e que existe o falante perfeito e ideal.
Recentes linhas teóricas nos apontam que não ocorre dessa forma. Nosso repertório linguístico, conceito trazido por Brigitta Busch, são as línguas/linguagens que nos constituem. Ele é biográfico e muda de acordo com nossa necessidade, experiência de vida e contato com a língua. A essa visão, damos o nome de visão plurilíngue. Entende-se aqui, que as línguas não se atrapalham, mas que formam o todo complexo que é o repertório do sujeito.
Vejam a figura a seguir representando essas ideias:
Pelo prisma desse último ponto de vista, o plurilíngue, entende-se que ocorre transferência de processos e saberes entre as línguas. Exemplos de transferências que ocorrem são aquelas ligadas às habilidades sensório-motoras como coordenação do olho com a mão e memória visual. Ou ainda aquelas ligadas às características comuns ao sistema escrito como alfabeto e associação fonema-grafema.
Por conta disso tudo, dissemos anteriormente que a escolha pela alfabetização bilíngue simultânea, ou seja o biletramento, está muito mais ligada à visão e construto teórico que as instituições e profissionais tem. Se a escola não estiver segura sobre esse processo, se achar que as línguas se atrapalham, se não entende que há transferências entre línguas e isso não significa que é prejudicial, pode optar por alfabetizar primeiro em uma língua e depois em outra. Agora, se a escola entende que é natural tudo isso que colocamos, opta pelo biletramento simultâneo.
Se os profissionais que atuam com a alfabetização não sabem como fazer esse processo de alfabetização e letramento em duas línguas ao mesmo tempo, o melhor é mesmo iniciar a alfabetização em primeira língua para depois iniciar em segunda. Isso porque a dúvida, insegurança, falta de consistência e repertório teórico podem a levar a resultados que comprometam esse processo. E de maneira equívoca, parece que o problema recai sobre o bilinguismo, quando está muito mais ligado a fatores relacionados à formação docente específica que é necessária para atuar nesses contextos.
Para saber mais sobre educação bilíngue e formação de professores, ouça nosso podcast Formação de professores bilíngues e o processo de seleção nas escolas.
Como vimos ao longo deste artigo, alfabetização e letramento envolvem um complexo processo de aprendizagem que se inicia desde que a criança chega ao mundo. Não existe certo e errado na escolha de como iniciar esse processo. Mas entendemos que não é preciso aprender em uma língua para depois aprender em outra. O que precisa haver é uma clareza de objetivos nas propostas pedagógicas ligadas a essa questão e que eles não sejam unicamente ligados à decodificação da língua escrita. É fundamental que haja espaço para ler e escrever de forma crítica, intencional e criativa.
Quer saber mais sobre educação bilíngue e bilinguismo, acesse outros artigos do nosso blog:
Educação bilíngue: possibilidades e desafios no Brasil.
5 fatos e curiosidades sobre Bilinguismo e Educação Bilíngue.
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Muito bom fazer parte desse grupo obrigada!
#orgulho 💜😍
Muito bom esse assunto.
Ficamos felizes que tenha gostado, Sirlete! 🥰
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